segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Alimentando a muitos pelas mãos de poucos



Na edição de estudo de “A Sentinela” de Julho de 2013, as Testemunhas de Jeová fazem um exercício exegético curioso, em que tentam convencer os leitores de que o seu actual Corpo Governante (a liderança do movimento) é o mesmo que o “escravo fiel e discreto” que aparece numa das ilustrações de Jesus no evangelho de Mateus (Mateus 24:45). É importante para as Testemunhas de Jeová este assunto, porque a autoridade da liderança radica quase por inteiro neste entendimento muito particular sobre quem é o tal “escravo fiel e discreto”, embora se trate meramente de uma ilustração de Jesus, e não como entendem as Testemunhas de Jeová, a designação de alguma classe de discípulos. Aliás, a ser isso, cairia por terra uma afirmação das Testemunhas que diz que entre eles são todos iguais, sem nenhuma classe clerical. Ora objectivamente, o Corpo Governante que define a ortodoxia do movimento e o faz com uma disciplina férrea, é uma classe sobre todos os demais, que estabelece uma hierarquia funcional de cima para baixo, desde os Superintendentes de Filial, passando por superintendentes de distrito e de circuito até aos anciãos e servos ministeriais, estes últimos nas congregações locais. Aliás, a partir dos superintendentes de circuito para cima é a própria organização que lhes paga a subsistência, tornando-os autênticos funcionários teocráticos ao serviço permanente da organização.

Mas não é sobre esses aspectos hierárquicos e funcionais que queremos analisar. Queremos antes verificar se, de um ponto de vista meramente exegético, isto é, se raciocinando meramente à base da Bíblia, o exercício de reclamar que há um modelo apostólico que respalda que Jesus, o incontestado líder da congregação cristã, designou em termos de ensino um pequeno grupo, para por meio dele, alimentar espiritualmente os restantes, ou não.

 O primeiro golpe a este raciocínio, ainda antes de abordarmos o artigo de “A Sentinela”, é dado pela própria Bíblia. Peguem numa e observem os livros que dela constam no Novo Testamento, e notem como todos eles emanam de um autor identificado e não de nenhum corpo ou organismo existente no primeiro século. Isto é, os autores da Bíblia, se bem que inspirados por Deus, são indivíduos e não organizações. Só por si, isto seria suficiente para inviabilizar qualquer raciocínio que defendesse a existência hoje de uma organização usada por Jesus para alimentar espiritualmente a outros. Como Jesus fazia menção em Mateus 24:45, “o escravo fiel e discreto” seria todo aquele que alimentasse os seus irmãos. Ou seja, cada cristão, na medida do seu progresso espiritual, adquiriria a responsabilidade de se tornar instrutor de outros. É precisamente nesse sentido que Paulo vai apelar aos hebreus (Hebreus 5:12): “Pois, deveras, embora devêsseis ser instrutores, em vista do tempo, precisais novamente que alguém vos ensine desde o princípio as coisas elementares das proclamações sagradas de Deus e vos tornastes tais que precisais de leite, não de alimento sólido.” Reparem na dicotomia de se ser simultaneamente instrutor e instruído, numa relação não hierárquica, pois Paulo não está aqui a apontar para uma qualquer classe de instrutores, mas para uma relação igualitária entre irmãos. Aliás sabemos hoje que as comunidades paulinas (congregações por ele estabelecidas) eram comunidades de uma ampla participação entre os seus membros, onde inclusive se permitia a participação às mulheres!

Portanto, ao observar mais do alto a Bíblia e as comunidades existentes no cristianismo primitivo, nada aponta para a existência de uma classe do “escravo”, para algum Corpo Governante, ou qualquer outro corpo central e centralizador de autoridade. Reforço dessa ideia vem do livro de Revelação, em que Jesus não se dirige a um corpo central para transmitir a outros as suas orientações, mas manda recados a sete congregações. Mesmo o argumento de que ao apóstolo João fiel receptador da mensagem, cumpra o papel do Corpo Governante, tal cai por terra pois a mensagem foi entregue a um indivíduo, na tradição dos tempos passados. Cumpria sempre ao profeta ser o transmissor da mensagem, mesmo que ela se destinasse a vários destinatários. Deus sempre suscitou um indivíduo, não uma classe, para transmitir as suas mensagens. E mesmo a existência de uma classe sacerdotal em Israel, não tira força ao argumento, se se tiver cuidado na análise: a classe sacerdotal apenas existia pela necessidade da oferta de sacrifícios no tabernáculo e depois no templo.

Voltemos, então, agora, ao artigo em pauta. O artigo pega em dois episódios do ministério de Jesus, aqueles em que ele alimenta materialmente a multidão, os famosos milagres da multiplicação dos pães. Nas duas ocasiões depois de Jesus ter pregado às multidões, ele manda que os apóstolos providenciem algo para elas, e aproveita para então fazer o milagre da multiplicação. O artigo defende, então, a tese que isso mostra que esse seria para sempre o modelo, Jesus providenciaria e depois esse alimento seria distribuído pela mão de uns poucos. Seria nesta sequência que se iria inserir a classe do “escravo fiel e discreto” e este será o Corpo Governante.

Primeiro problema: nas duas ocasiões foi providenciado quer alimento espiritual, quer alimento material. Portanto, fazer a aplicação da distribuição de alimento material como paralelo ou modelo da distribuição de alimento espiritual, é para dizer o mínimo, abusivo! Se alguma ilação se pode tirar do episódio, seria até contrária à prática das Testemunhas de Jeová! No caso, Jesus seria o providenciador do alimento espiritual, distribuído por ele directamente e sem intermediários, beneficiando a todos, e caberia aos discípulos mais próximos a responsabilidade de providenciar o que era material! Não esqueçamos que Jesus interpela directamente os apóstolos nesta questão da providência material: "No entanto Jesus disse-lhes: “Não precisam ir embora; dai-lhes vós algo para comer”" (Mateus 14:16) Note-se que a interpelação é directa, Jesus acha que é a eles que cabe providenciar materialmente a multidão. Ora, as Testemunhas de Jeová consideram hoje que não é sua responsabilidade primária providenciar materialmente os necessitados, o que até contraria outras passagens das Escrituras. (Tiago 1:27)

Segundo problema: a distribuição, embora pela “mão de poucos”, no caso em apreço, pelas mãos dos discípulos, não indicia qualquer organização específica! Ou seja, naquela altura não havia nenhum corpo de discípulos específico, semelhante, por exemplo, ao Corpo Governante, como estando separado dos demais. Se há aqui algum paralelo a tirar para a modernidade, seria o de que todos os discípulos têm igual responsabilidade na distribuição de alimento. É importante frisar que o texto refere discípulos e não apóstolos. Também tentar argumentar que estes ‘discípulos’ eram os apóstolos, parece ter muito pouco cabimento, pois sabemos que, entre os discípulos que seguiam a Jesus, havia mulheres (Mateus 27:55) e em certa ocasião se refere que setenta haviam sido enviados em uma campanha de pregação (Lucas 10:10). Portanto, estes dois episódios não justificam a ideia de alimentar a muitos pela mão de poucos, porque neste caso os poucos seriam todos os discípulos presentes. Necessariamente teriam de ser substancialmente mais de 12 se haviam de alimentar a milhares num tempo razoável!

Terceiro problema: naquela ocasião, a multidão alimentada não se tornou automaticamente seguidora de Jesus! Se é verdade que mais tarde o quiseram fazer rei, isso se prendeu com o facto de buscarem a sua própria vantagem (João 6:15). Portanto, seria uma má ilustração de como alimentar espiritualmente alguém, pois este modelo geraria sentimentos egoístas, como se alguém que buscasse o Reino e a sua justiça, apenas estivesse animado na busca da sua própria vantagem. Ora, a lição de Jesus não é essa! A sua lição vai sempre no sentido e na prática do amor. O alimentar pessoas é, de facto, evidência disso, do cuidado e da preocupação com os outros. (Mateus 15:32)

Concluindo: não há nestas passagens, nenhuma base sólida para acreditar que Jesus estivesse pensando em estabelecer um modelo de distribuição de alimento espiritual para o futuro. A ideia de alimentar a muitos pela mão de poucos, acaba sendo uma construção frágil. Tanto mais frágil, se pensarmos que o verdadeiro providenciador é Jesus. Os discípulos apenas têm de dar “testemunho de Jesus” (Revelação 19:10). E, como diz Paulo, “não vades além das coisas que estão escritas” (1 Coríntios 4:6) ou ainda em outra ocasião quando diz que não se acredite em outras boas novas, nem mesmo que transmitidas por um anjo! (Gálatas 1:8) Tais afirmações reforçam a ideia de que tudo o que havia para revelar tinha sido revelado por Jesus e apenas haveria que seguir o seu pensamento.

Jesus é o líder activo da congregação cristã e não precisa delegar autoridade em ninguém como classe para dirigir a congregação. Isso seria, aliás, a negação do papel que lhe cabe. Como fez no passado, apenas precisa de assegurar que com a colaboração humana, o seu alimento esteja sempre disponível. Neste particular, quero mencionar que quando as Testemunhas de Jeová apareceram no cenário do mundo, já muitos antes delas haviam outros colaborado com Jesus nesse sentido. Muitos traduziram a Bíblia com risco da sua própria vida até, muitos tinham dado a sua interpretação do texto, ou elucidado certas passagens, todos esses, mesmo que em denominações diferentes e até com visões antagónicas, contribuíram para o dinamismo do Cristianismo e para que a sua chama e encanto se mantivesse acesa. Foi sempre a autoridade, a concentração de poder eclesiástico, que trouxe sobre ele, Cristianismo, as piores manchas, o seu lado mais sinistro, sombrio e negro. As organizações foram elas sempre a lançar blasfémia ao nome do Cristo, contribuindo mais para a sua desconsideração e descrença, do que a fé do crente individual, do discípulo que movido pelo seu exemplo e ensino se esforçou no caminho do amor.

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